Minhas tias, Nalu e Dani, alugavam um sítio em Rio Bonito de Cima, do qual toda a família tirava casquinha. De Cima, pois existe o “De Baixo”, o nosso é perto de Lumiar. Perto é relativo. Da estrada asfaltada que vai para Lumiar, o sítio ficava a 18km de estrada de terra.

Recém ingressada na faculdade, o que todos os meus colegas queriam era um sítio para confraternização, vulgo azaração. Mas nosso sítio não era para amadores.

Nem todos dirigiam e, dos que já tinham idade e carteira, poucos tinha acesso a um carro. Daniel era um deles. O carro era um Fiat Uno branco chamado Gleglé, por conta de uma história que ele contava que estava estacionando o carro na garagem e passou grudado em uma pilastra e escutou “gleglé”, aí resolveu desfazer a ré e ouviu novamente “gleglé. Gleglé era protagonista de algumas aventuras, como a vez em que o Daniel engrenou uma ré em plena Radial Oeste e Laura teve certeza de que morreria naquele dia. Não sei se por seu passado, ou realmente por questão de logística, apenas Rique e Daniel foram no carro e o resto da galera de ônibus. A ideia era que o carro levaria todas as bagagens e parte das compras, e poderíamos ir de ônibus sem peso. O vilarejo perto do sítio não oferecia muita opção, logo a gente sempre levava tudo que iríamos precisar.

O ônibus nos deixava em Muri, onde faríamos as compras, e de lá pegaríamos um segundo que ia pulando durante todo os 18km de estrada de terra. Parte das compras já estava no Gleglé, porém havia uma lista complementar que resolveríamos em Muri. Compras feitas e tudo resolvido a tempo para pegarmos o ônibus que, se perdêssemos, só no dia seguinte.

Vencidos os 18km de pula-pula, ainda tínhamos que encarar 2km ladeira a cima até o sítio. Típica viagem que só se faz aos 18/20 anos. Alguns detalhes: a casa não tinha luz, não tinha água quente e, claro, não tinha nenhum meio de comunicação. Só se fosse via sinal de fumaça. Inexplicavelmente, alguns surtavam por lá.

A primeira coisa a fazer era ligar a geladeira a gás para colocar as compras… Cadê as compras? Quem pegou as compras? Concluímos que todas as sacolas tinham ficado no ponto de ônibus. Até hoje tenho dificuldade de entender como isso aconteceu. Ninguém lembrava de ter pego. Quando o grupo é grande, sempre o outro é o responsável. Como comentei, o vilarejo não oferecia muita opção e o pouco que era oferecido, não tínhamos mais dinheiro para comprar. Alguém conseguiu comprar um pacote de biscoito recheado que foi irmãmente dividido.

Talvez então, com apenas metade da comida programada, fosse motivo para alguém surtar. Um surtou. Passou a primeira noite em claro “sufocado” pelo isolamento, silêncio e escuridão ao redor.

No final sobrevivemos e voltamos todos inteiros, após curtirmos a cachoeirinha mais a piscina natural e roubarmos alguns ovos de codorna das minhas tias. 

Proteção e aconchego

Isso é louco para mim. Na primeira vez que estive lá, a visão daquela pequena casinha, que não era tão pequena, afinal tinha 3 quartos, uma sala e uma cozinha grandes, além de uma boa varanda em L, mas que perto da magnitude das montanhas que a cercavam a fazia parecer micra… Bem, a visão dessa casinha situada exatamente nesse vale, me dava uma incrível sensação de proteção e aconchego. Quando descrevi o sítio assim para a Nalu, lembro dela achar a descrição perfeita.

Porém para quem chegava lá, sempre parecia o cenário perfeito de filme de terror.

Uma vez fomos, eu, Rique, minha prima Daniela e seu namorado da época, Rodrigo. Rodrigo era filho de delegado e, obviamente no silêncio e escuridão da noite, sentados na cozinha à luz do lampião, achou sensato contar história bizarras e violentas vividas pelo pai durantes seus anos de profissão. Terminamos a noite com ele contando sobre os irmãos de Lumiar que estupravam e matavam mulheres dentro de suas casas.

Fomos tentar dormir. Conseguimos. Por poucas horas. No meio da noite, Rodrigo bate na porta do nosso quarto e a abre já de galochas e um enorme facão na mão. Facão esse que era usado para cortar os cachos de bananas.

– Acorda, Henrique, eles estão lá fora! Os irmãos de Lumiar estão lá fora! Ouve!

Acho que só não pulei no seu pescoço por causa do facão, completamente sem fio, mas ainda capaz de me machucar.

Vindo lá de fora, ouvíamos um barulho estranho que parecia um grito, algo como “muAAAAAAA”. Mas tem tanto som estranho na natureza.

– Rodrigo, volta para cama, isso deve ser coruja!

– Não! Isso são os irmãos se comunicando!

Olhei para o Rique com cara de “tira esse cara daqui que eu quero voltar a dormir”, mas, por algum motivo inexplicável, ele entendeu como “pula da cama e vai se juntar a esse maluco em uma busca sem lógica no breu total lá de fora”.

Não sei quanto tempo eles rondaram a casa, a raiva deve ter feito me parecer bem maior do que foi. Lembrando que eu e Daniela estávamos sozinhas cada uma no seu quarto sem luz, esperando o retorno de nossos heróis.

Rique voltou para a cama. Fiz um esforço para que minha raiva não atrapalhasse o que restava de horas de sono.

Com a luz do sol tudo se transforma, o cenário de terror volta a ser paisagem da Disney.

Como de costume, vamos até o curral para pegar leite com Seu Alcedino, que cuidava dos animais, e nos mostrou todo orgulhoso:

– Olhem o bezerrinho que nasceu essa noite!

Isso, a comunicação entre os irmãos de Lumiar era uma vaca parindo.

Bebês

O bezerrinho não foi o primeiro bebê do sítio. 

Meu sobrinho e afilhado João era bem pequeno quando começamos a frequentar o sítio. Lembro que no caminho para lá, havia comentado com o meu pai que estava louca para chegar a época em que o João começaria a interagir mais, dei especificamente o exemplo: “já imaginou ele estendendo os bracinhos pedindo colo, que delícia!”.

O meu desejo deve ter sido telepaticamente transmitido ao Joãozinho no outro carro. Quando chegamos no sítio, ele estendeu os braços pedindo colo e não desgrudou mais pelos próximos anos. Tanto que quando comecei a namorar o Rique, João se metia entre nós empurrando o intruso para longe de mim. Muitas vezes, eu tinha que sair de casa escondida para não o ouvir chorando na porta enquanto o elevador se fechava.

Nesse fim-de-semana, em um certo momento, Ju resolveu se sentar na varanda para dar de mamar observando a envolvente paisagem de morros protetores. Sentada no chão com as pernas esticadas, seus pés ficavam pendurados para fora.

Devagarzinho um serzinho foi se aproximando. Era um mini potrinho, recém-nascido, cuja a mãe, que mais cedo havia ficado se posicionando entre nós e ele, sentindo que não havia perigo no momento, permitia sua ousadia. Sem timidez alguma foi chegando cada vez mais perto. Provavelmente atraído pelo cheiro do leite, esticou o pescoço e tentou mamar no dedão do pé da Ju que parecia estrategicamente posicionado para esse fim.

Só love

Agora, a vez que mais deu o que contar foi quando fomos eu, Rique, Lídia e Erick.

Eu, Rique e Erick éramos amigos de faculdade. E Lídia, minha amiga de escola. Como disse, nessa época, nem todos dirigiam e, dos que já tinham idade e carteira, poucos tinham acesso a um carro. Lídia tinha acesso a um carro, mas não dirigia. Erick, o mais velho entre nós, era o único que dirigia. Resolvido, temos um carro e um motorista. O carro da Lídia não tinha nome, era um Chevette Hatch amarelo, mas com um pequeno detalhe: ex-táxi, bem velhinho, merecendo se aposentar.

A ida foi tranquila. Erick super responsável no volante e eu e Rique nos pegando no banco de trás.  Aquela energia de começo de namoro.

Chegamos tranquilos, não tínhamos esquecido as compras. Estava tudo ótimo, dois casais só querendo pegação o fim de semana inteiro.

Erick, chatonildo, não deixava tirar foto dele. Então, quando ele foi ao banheiro, com a câmera nas mãos, já me posicionei, assim que ouvi o barulho da descarga, em cima do banquinho, devido nossa diferença de altura, para pegá-lo na saída. Passou um tempo e nada. Mais um tempo e nada. Cansei e desci do banquinho, me juntando a Lídia e Rique que estavam perto da lareira, estava bem frio essa noite. Erick é fissurado por história de coco, nunca vi igual. Até brinquei, “ele gosta tanto de coco que nem consegue se despedir do dele”.

Depois de mais um tempo, ele finalmente sai do banheiro e vai direto para o quarto. Volta de lá com um short sobre a calça de moletom e se posiciona entre nós e a lareira com a bunda virada para o fogo. Que cara estranho. Daqui a pouco ele avisa:

– Estamos sem não papel no banheiro.

Uma historinha começa a passar em alta velocidade na minha cabeça e eu começo a rir enquanto a narro para os demais. As palavras saiam junto com as risadas.

Sem papel, ele teve que limpar a bunda com água congelante, lembrando que não havia água quente lá. Na teoria, se a gente ligasse o fogão a lenha, aquecia a tubulação, mas eu nunca cheguei a ver isso na prática. Então, em dias frios como aquele, a gente se contentava com o banho na piscina natural. É água de rio, está mais que valendo, inclusive a mesma que vai para o chuveiro. Como ninguém tomou banho no banheiro, também não tinha toalhas lá. Erick estava esse tempo todo esperando a bunda secar naturalmente. Certamente estava levando mais tempo que imaginava, então colocou a calça assim mesmo e correu para o quarto para disfarçar com o short e agora estava tentando descongelar a bunda na lareira.

Rimos até vermos um farol de carro vindo lá do começo do terreno. A estrada de 2km era acesso apenas para a nossa casa, não era passagem para lugar algum. Claro que já tínhamos trazido novamente os tais irmãos de Lumiar para dentro do sítio, era só anoitecer, que alguém já falava deles.  Pronto. Estávamos perdidos, com certeza eram os irmãos de Lumiar.

O carro cada vez mais perto e a gente não sabia se era para se esconder ou se era para procurar o facão de catar banana, sem fio. Como não fizemos nem uma coisa nem outra, o jeito foi ir até a varanda aceitar nosso destino.

O carro para na nossa frente e de dentro sai Fabiana, filha de Seu Alcedino, e Claudinho Bambu. Claudinho Bambu era um veterano nosso lá da ESDI, nossa faculdade, Escola Superior de desenho industrial, da UERJ. O cara é fera do bambu, ele chegou a morar na China para pesquisar mais sobre essa planta que praticamente é uma grama gigante de rápida renovação, ideal para usar de matéria-prima e criar coisas incríveis. Nessa época, o bambu não era tão famoso quanto hoje. Uma tábua de bambu, que ganhamos anos depois de casamento, era cara por ser uma super novidade.

Um dia, na oficina da faculdade, tínhamos conversado com Claudinho sobre Rio Bonito de Cima e, animado, nos contou que os pais tinham casa por lá. Só não sabíamos que ele era namorado da Fabiana. Seu Alcedino contou à filha que estávamos no sítio, que contou para o Claudinho, que resolveu passar lá para nos convidar para uma pizza a lenha na casa dos pais.

Aceitamos o convite, mas Lídia e Erick preferiram ficar na casa namorando. Até a casa dos pais do Claudinho era tranquilo o Rique dirigir. Fomos seguindo o carro deles. A pizza estava maravilhosa, os pais dele eram muito simpáticos, a noite foi super agradável.

Na hora de voltar, o pneu do carro estava furado.  Pelo horário, Claudinho, pessoa incrível, resolveu nos levar até em casa e buscar no dia seguinte para a troca. E assim foi. Até aí tudo tranquilo.

O dia estava lindo. Resolvemos ligar um pouco o rádio do carro, para diminuir a sensação de isolados da civilização. Demos sorte de estar tocando Claudinho e Bochecha, estava tudo maravilhoso, era só Love, só love, só love, só love

Domingo chegou e era dia de partir. Arrumamos a casa, prontos para deixar esse paraíso e o carro não pega. Bateria totalmente arriada. Só nessa hora lembramos de uma das indicações do pai da Lídia avisando que, ao desligar o carro, o rádio pararia de tocar, porém ainda estaria ligado, era necessário mexer em uma chavinha atrás dele. O só love acabou com nossa bateria.

Nisso, Rique e Erick decidem que vão andando até Lumiar para resolver o problema. Lembrando, eram 18km só até a estrada de asfalto, sei lá mais quantos até Lumiar. Mas nada que eu e Lídia falássemos faria eles mudarem de ideia. E assim saíram nossos heróis.

Não demorou a entardecer, eu e Lídia, para fugir de pensamentos negativos, começamos a falar sem parar. Acredito que nem ouvíamos o que a outra falava. E para nos protegermos dos irmãos de Lumiar, trancamos todas as janelas e portas.

Obviamente que os dois nem chegaram perto de Lumiar. Chegaram até a casa de Claudinho, que devia ser a uns 5km, para pedir que ele avisasse aos nossos pais que não conseguiríamos voltar naquele dia. Claudinho então falou que muitos do vilarejo usavam bateria de carro para assistir televisão.

Conseguiram uma e rumaram de volta com o céu já praticamente preto. A bateria era absurdamente pesada e eles revezaram na ladeira de volta.

Nessa hora, Erick começa: “Já imaginou se durante esse período que estivemos fora, os irmãos de Lumiar invadiram a casa e mataram as duas? Além de perder as meninas, ainda seremos presos!”

Então os passos apressados se tornaram uma corrida moro a cima carregando a tal bateria mega pesada. Quando já estavam razoavelmente perto, começaram a gritar nossos nomes.

Nós duas, na cozinha que nem matracas, falávamos cada vez mais alto e empolgadas simultaneamente, com todas janelas e portas fechadas.

De repente, começamos a ouvir gritos desesperados. Eles gritavam os nossos nomes, estavam em apuros! Corremos para porta, e ao abrir os dois gritam:

– POR QUE VOCÊS NÃO RESPONDEM! ACHAMOS QUE ESTIVEM MORTAS!

Eles que nos abandonam e a gente que leva a bronca, sério!?

Já estava tarde e nossos pais já avisados, sendo assim, a volta ficou para o dia seguinte.

A tal bateria foi carregada ladeira acima à toa, pois não funcionou. Almoçamos desanimados e desesperançados, quando os dois resolveram fazer o carro pegar no tranco. Só um pequeno detalhe, essa ladeira era completamente esburacada e era necessário desviar das pedras enormes que havia por todo o terreno. O trecho do começo era a parte mais íngreme, mas também a que terminava em uma ponte com uma curva bem fechada em seguida. O carro tinha que pegar nesse percurso, torcendo para não terminar dentro do rio. Teimoso, o carro só pegou sobre a ponte e Rique, com medo de deixá-lo morrer, fez a curva com um pé no freio e o outro no acelerador.

Estávamos, eu e Lídia, lavando a louça do almoço, quando Erick chega como um treinador de futebol americano:

– CORRAM! CORRAM! O CARRO PEGOU! Temos que levar tudo correndo até lá embaixo, Henrique está lá mantendo o carro acelerado!

Consegui escrever rapidamente um bilhete, envergonhadíssima, pedindo mil desculpas às minhas tias por deixar a bagunça na cozinha, mas afinal, o carro tinha pegado e eu tinha que correr ladeira abaixo com nossas mochilas.

Terminados os 18km de terra, Rique nos orientava a parar no primeiro borracheiro para consertar o pneu furado. Cansados, tentávamos convencê-lo a irmos direto para o Rio, afinal, quais eram as chances de mais um pneu furar? Rique foi irredutível e, em Muri, achamos uma borracharia. Pneu consertado e estepe de volta no porta-malas, rumamos para o Rio.

Já chegando, no viaduto antes do túnel Santa Bárbara, outro pneu fura. Parados, reparamos como o viaduto balança. Subíamos e descíamos cada vez que um carro passava em alta velocidade. Certamente o pior local para se trocar um pneu, mas tínhamos nossos heróis. Acontece que com a ladeira completamente esburacada e cheia de pedras com o carro descendo sem poder frear para conseguir que o motor pegasse no tranco, o local embaixo do carro onde o macaco encaixa estava totalmente deformado.

Por ser o pior local possível para trocar um pneu, rapidamente apareceu um reboque com um macaco hidráulico que faz o carro parecer de isopor. Mais uma vez, pegamos o estepe enterrado sob nossas mochilas.

Viva o Rique que nos obrigou a parar no borracheiro.

E viva também o sítio de Rio Bonito de Cima que me proporcionou tantas histórias e que tem um espaço reservado em nossos corações.

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